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domingo, dezembro 14, 2003

A subtileza 

Hoje de madrugada os norte-americanos capturaram o Saddam. Grande festa. O homem estava em Trikrit, metido num buraco com meio metro de abertura, sem luz e coberto de terra. Barbudo como tudo. Sujo e atordoado.
No meio das celebrações porque "a humanidade deu um passo em frente", surgem-me umas questões.

O mundo acordou com a notícia por via de um vídeo. Um de má qualidade. Aquele típico bambolear de câmara com uma colocação descuidada. Penso que sem estes pormenores subtis a guerra não seria a mesma coisa. Espero que o pal plus nunca chegue às mãos dos repórteres de guerra. Mas a subtileza de que falo no tópico não é essa.

Ainda alguém se lembra do Afeganistão? O Saddam era outro, desta feita, nunca mais se soube dele. Ora, neste outro cenário, haviam 2 personagens que nos tomaram as atenções durante 2 dias de sofrimento partilhado a nível planetário. Enquanto voavam no seu helicóptero, parece que por falha técnica aquilo começou a cair. Puxaram dos pára-quedas, aqui vai disto ó Evaristo, e atiraram-se direitinhos para um bando armado, daqueles que por falta de uma zona J, sprays de tinta e injustiças sociais ao nível das proprinas universitárias decidem andar à caça de cabeças para afinar as Kalashnikovs. Deram uns sopapos nos americanos, pegaram na câmara de filmar (c’um caraças, parece que só eu é que nunca tive uma) e deram-na a um camera-man com Parkinson e dificuldades notórias na focagem de objectos. Filmaram os jovens americanos e entregaram a cassete às cadeias televisivas que espumaram de felicidade com tamanha graça divina.

A convenção de geneve definiu as leis da guerra, pelas quais existem deveres e direitos universais pelos quais qualquer conflito armado se deve reger. Uma dessas leis é explícita: não se pode humilhar um prisioneiro de guerra. Dele, não se podem publicar fotografias, filmagens, escritos nem gravações de voz. Isto porque, tal como aconteceu neste caso, o pai, o filho, a mulher ou o irmão não quererão ter o conhecimento da coisa pela televisão, enquanto todo o mundo com a melhor das intenções suspira de alívio: “ ainda bem que não foi a mim… coitadinho… “.

Por tudo isto, aquelas filmagens dos 2 soldados norte-americanos deram muito que falar. Penso que o responsável pelo documento da convenção de genéve abriu o pc, foi aos DocumentosDaOnu e abriu o geneve.doc no qual onde se lia «… não se podem filmar…» se passou a ler «… não se podem filmar…».

Ora, foi exactamente com uma filmagem dessas que o mundo tomou conhecimento que o senhor das trevas tinha sido capturado. Aqui chegamos a um imbróglio interessante. As leis marciais têm que ser aplicadas indiscriminadamente, e a todos por igual. O comandante do exército que deixou publicar essas filmagens tem que ir a tribunal de guerra. Quer seja o da coligação, quer seja o do exército dos EUA, será sempre a mesma pessoa: o nosso bem amado, estrela mais brilhante da constelação Q.I.< 70, o sôr tôr Jorge Bush. Se tal não acontecer, como de certo assim não será, estamos perante uma dualidade de critérios que cria um precedente muito perigoso: o de desrespeitar uma convenção universal, tão ou tão pouco importante como a declaração dos direitos humanos. E o mundo, impávido e sereno, muda de canal.

Não é tudo. Os americanos não param de me surpreender. A subtileza que os caracteriza, nem sempre subtil de facto, costuma vir acompanhada, qual Bush, por uma desmazelada falta de inteligência. Sem com isto denegrir a esperteza que de certo ninguém lhes levará. Por essa mesma esperteza, e com o meu amor pelos cães, sinto-me impedido de aos cães chamar espertos. Mas de que falo?

Não se encontraram armas de destruição massiva, até mais ver. Que crimes serão julgados pelo Tribunal de Crimes de Guerra no caso do Saddam? Do que vi da CNN hoje, apenas 2, que, de certo, todos partilharão comigo a sublime (permitam-me a correcção: subtil) emoção do ridículo:

1. invasão do Kuwait.
2. uso de armamento químico contra a etnia curda.

Quanto à invasão do Kuwait pouco tenho a dizer quanto ao expoente do ridículo. Um caso rotineiro da família Bush. Penso que estamos todos a par do que se sucedeu por 2 vezes e de que interesses tudo isso se envolveu.

Quanto ao uso de armamento químico contra os curdos talvez seja preciso um reavivar de acontecimentos históricos.

Estamos nos anos 70, e existe uma preocupação do mundo “ocidental e devidamente civilizado”. O médio oriente está instável, e como a humanidade ainda não sarou a ferida da “sementeira de guerras” (basta ver onde começou quer a 1ª quer a 2ª grandes guerras) os EUA, encabeçando o topo do que são os valores morais, decide ajudar um pobre homem a criar a primeira república laica do médio oriente. Tal qual o chinoca que não dá o peixe mas sim a cana, os EUA em vez de cadáveres, dão AK’s. Que bonito meus amigos. Mesmo a jeito para fazer desaparecer um carregamento de AK's que possivelmente vinha da URSS com destino para Cuba que os EUA NÃO interceptaram. Embora não fosse a guerra fria que estamos habituados a ver nos filmes, tal como todas as guerras, independentemente da sua temperatura, era uma bastante especial. A subtileza também aqui batia o pé constantemente. Não estou muito a par de como estavam cotadas no mercado as armas químicas nessa altura, mas presumo que o preço de meia dúzia de AK’s já dá para fazer um gászito de nervos janota. Ora, o inédito aconteceu. O tal pobre homem que decidiu fundar a primeira república laica do médio oriente, de sua graça Sr. Saddam Hussein, achou por bem ser o primeiro em mais 2 ou 3 pormenores. Que tal fundar a primeira ditadura laica? E que tal a primeira ditadura laica e xenofóbica para com os curdos? E assim se fez história. Lá foram os curdos curtir uma moca de gás dos nervos. A ressaca tomava lugar em valas comuns.

É certo que Saddam soube concretizar a parte do "laica" da sua "república". Nunca no médio oriente a religião deu tão pouco problemas. Certo que xiitas e sunitas não se davam bem e de vez em quando lá explodia um. Mas isso é em todo o lado, nunca foi característica intrínseca ao iraque. Daí ter sido tão positivo capturar o Saddam vivo. Assim não se torna um mártir à boa maneira muçulmana e o propósito da questão não sobe de nível para se tornar religioso, a tão temida "guerra santa" dos dias que correm.

Mas o progenitor do nosso amigo Bush actual (o júnior para os amigos) não achou piada. Nada teve a ver com a crise do petróleo que os EUA atravessavam, atenção, foi uma questão de valores morais. Como diz o meu pai para lixar a minha mãe: valores morais sarnentos.

Sem armamento de destruição massiva, é disto que culpabilizarão o Saddam. Daquilo que ele fez, em tempos, com o aval e ajuda do governo dos EUA. Curioso han? Oportuno o momento, subtil a distância que separa o mau desta história, do bom de todas as histórias. Assim se faz história. Subtilmente.

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